No tempo dos atabaques
Os terreiros espíritas nas favelas do Rio tiveram seu auge entre os anos 40 e 60. Na década de 70, eles começaram a fechar as portas nos morros para reabrir em cidades da Baixada Fluminense, em áreas mais isoladas. Segundo alguns praticantes da Umbanda e do Candomblé, a lei do silêncio, que proibia os batuques religiosos, ajudou a expulsar alguns desses centros. Os que sobraram, enfrentaram a dura concorrência com os novos templos evangélicos.
A perseguição policial sempre foi um infortúnio para ambas as religiões. "Eles entravam nos terreiros e, se o caboclo (o responsável) não estivesse, quebravam tudo, furavam os atabaques, era um Deus nos acuda", lembra Celita Vieira de Abreu, de 67 anos, mais conhecida como Obassy, umbandista que hoje flerta com o candomblé.
Espírita praticante desde os 14 anos, Celita adotou o nome Obassy em homenagem ao orixá, que lhe deu “forças para superar as dificuldades” da vida. Além disso, Obassy é o nome da terceira mulher de Xangô. “Então, é também uma rainha”, diz ela, com orgulho indisfarçável.
Moradora da Cidade de Deus (Zona Oeste do Rio) desde 1967, Obassy deixou a Rocinha (Zona Sul) após o trágico temporal de 66, que pôs abaixo barracos em toda a cidade. Passou por vários alojamentos provisórios até ser instalada na comunidade.
Lá ela acompanhou de perto a perseguição sofrida pelos “praticantes” da Umbanda e do Candomblé. Segundo ela, eles sofriam com a crueldade dos policiais: "Eles botavam até os atabaques furados na cabeça das mãe-de-santo", diz Obassy.
Dona de um barracão de Umbanda, no Grotão, na Penha (Zona Norte), herdado do marido, o Pai-de-Santo João Felipe Filho, morto há 11 anos, Vera Regina da Silva Felipe, de 66 anos, também testemunhou a perseguição policial e conta que ela foi realizada com maior freqüência até meados dos anos 60. "O que eles viam de santo, eles quebravam. Uns até levavam para a rua", lembra Vera.
Terreiros famosos
Era o fim de época de ouro dos terreiros espíritas nas comunidades, que viveram um boom, dos anos 40 aos 60, que atraiu boa parte da classe média às favelas cariocas. O compositor e escritor Nei Lopes lembra de vários terreiros badalados, que fizeram a cabeça de muita "gente boa”.
"O terreiro de Seu Paulino, pai do falecido compositor Duduca, no Salgueiro, foi famoso. Chegou a ser visitado, nos anos 60, por artistas internacionais, como a rumbeira mexicana Ninón Sevilla".
Nei Lopes, que lançou em 2004 a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, lembra ainda que outros "estrangeiros famosos" visitaram o terreiro de Mãe Adedé, em Ramos, no subúrbio da Leopoldina. Uma dessas visitas teria sido feita pela cantora e dançarina americana Josephine Baker, em 1939, guiada por Dona Neuma da Mangueira.
A própria Mangueira também teve a legendária mãe-de-santo Tia Fé, conhecida como a "grande mãe" da comunidade.
Também célebre foi o terreiro comandado por Vovó Maria Joana Rezadeira, até meados dos anos 80, na comunidade da Serrinha, em Madureira (Zona Norte). Cantora do grupo Jongo da Serrinha e neta da famosa Mãe-de-Santo, Dely Moreira Chagas lembra que o barracão era um dos mais procurados da região.
Entre os famosos que marcaram presença na Serrinha, estava a cantora Clara Nunes. "Nossa, quando ela chegou aqui pela primeira vez foi um alvoroço. Todo mundo queria ver, queria tocar", conta Dely. Ela diz que a euforia dos moradores foi passando com o tempo, a medida que a presença dela ia sendo cada vez mais constante.
"Depois já era comum vê-la por aqui, ela ficava descalça o tempo todo, ela era muito simples, dizia se sentir em casa. Aí as pessoas se acostumaram com a presença dela", conclui.
Banquete para cachorro
Entre as histórias que tornaram o terreiro famoso está a de uma promessa feita por Dona Maria Joana pela saúde da filha, Emely Monteiro.
Filha de Emely, Dely conta que a mãe tinha uma dor de cabeça que não passava nunca. Então, Dona Maria Joana fez uma promessa para São Lázaro: se a dor de cabeça de Emely passasse, faria uma vez por ano um banquete para os cachorros.
O banquete, que seria feito durante sete anos, se tornou um dos eventos mais concorridos do terreiro e foi feito até a morte da matriarca, em 1986. "Virou uma festa", lembra Dely. Era tudo do bom e do melhor. Os vizinhos levavam seus cachorros, que eram os convidados de honra. A mesa era posta no chão.
“Só depois deles é que as pessoas podiam comer. Minha avó só ficava um pouco triste que os cachorros de casa não comiam. Acho que ficavam envergonhados com tanta gente", se diverte Dely.
Deputado subia morro de madrugada
Um outro evento também concorrido era realizado em 13 de Maio (Dia da Abolição da Escravatura), na Cidade de Deus, quando Obassy tocava e oferecia feijão para seu Preto Velho.
"Teve um ano que cheguei a fazer 18 quilos de feijão", conta ela. O feijão do caboclo ainda atrai dezenas de pessoas da comunidade, mas problemas de saúde obrigaram Obassy a diminuir o trabalho e o tamanho da festa.
Segundo a viúva Vera Regina, na época de seu marido João Felipe, a casa da Penha era uma das mais procuradas da região. "A comunidade freqüentava mais e muita gente de dinheiro vinha também", diz. Entre os que visitavam o centro, estavam dois famosos deputados estaduais, pai e filho, que ela prefere não identificar. "Eles chegavam de carro e só vinham de madrugada, quando não tinha mais movimento nenhum".
O início da saída dos terreiros dos morros cariocas começa na década de 70, de acordo com Eduardo Moreno, de 35 anos. Conhecido como Fomo de Yemanjá, Eduardo é Pai-de-Santo, e reabriu o terreiro que o tio deixara para a viúva Vera Regina. Ele está mudando a linha da casa da Umbanda para o Candomblé. E explica que a lei do silêncio que proibia batuques religiosos ajudou a empurrar os templos espíritas para a Baixada Fluminense, em locais, em geral, amplos e sem vizinhos.
A visão de que a saída dos terreiros facilitou a chegada dos evangélicos aos morros cariocas ainda gera muita polêmica. Já “a perseguição” que se seguiu é praticamente consenso entre os praticantes. Segundo eles, essa perseguição dos evangélicos aos cultos espíritas teria sido reforçada por seu julgamento dessas práticas como algo ligado “ao mal”.
Para Obassy, isso não passa de discriminação religiosa. “O que eu posso te dizer é que eu não sou ex-nada. Não sou ex-drogada, ex-assassina, ex-ladra. E o que a gente vê é um monte de religioso ex, sempre querendo julgar os outros. Se eles levassem a realidade deles sem se preocupar com a vida dos outros...", desabafa, magoada.
Um dos poucos terreiros que resistiram à proliferação de igrejas evangélicas nos morros e ainda recebem para sessões é o de Eduardo, na Penha. Ele comenta a relação dos seguidores da sua religião com os integrantes da igreja evangélica Universal do Reino de Deus.
"De vez em quando eles passam e falam: ‘Tá amarrado, tá isso, tá aquilo’. E dizem que o Deus deles é maior, é melhor. Mas Deus não é igual pra todos? Não é porque isso é uma casa de Candomblé que Deus não habita essa casa. Deus habita aqui, sim. Eles têm um pensamento que essa casa é governada pelo diabo, tudo é o diabo pra eles", diz
Na Serrinha, o terreiro de Vovó Maria Joana está fechado desde a morte da mãe de Dely, em 1994. A partir dali, ela apenas mantém as obrigações, acendendo as velas e trocando as flores dos santos. "Durante muitos anos, depois de fechado, as pessoas ainda vinham aqui procurar minha a avó e também minha mãe", conta.
Já na Cidade de Deus, Obassy faz apenas dois toques para os caboclos por ano, além do Feijão do Preto Velho. "Mas algumas pessoas ainda vêm aqui, pedem para rezar as crianças. Eu atendo".
Na região de Jacarepaguá (Zona Oeste), Obassy ainda lembra dos terreiros do falecido Zé Ribeiro, que seu filho transformou em igreja evangélica, Mariazinha do Tupinambá e Nilton Ganchinho, este último ainda em atividade em Curicica, também na Zona Oeste.
Obassy atribui à desunião dos espíritas o fato de as religiões afro-brasileiras terem perdido espaço para os católicos e os protestantes. "Se eles conseguem lotar o Maracanã, por que nós não conseguimos? Porque não lutamos em conjunto pelo que acreditamos, por isso", diz. Quando têm que responder qual a sua religião, a maioria dos brasileiros, afirma ela, acaba dizendo que é católico, negando assim a própria crença.
Eduardo, por sua vez, acha que essas são pessoas que não têm esclarecimento da sua própria religião. "Uma pessoa que não assume sua religião não sabe o que quer da vida. Até um ateu, que não acredita em nada, assume o que é", diz. Obassy acrescenta: "Todo católico é macumbeiro. Toma a hóstia de manhã, mas à noite vai lá bater a palminha da mão. É místico".
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